
Vivenciaram o drama dos incêndios do último verão na freguesia do Carvoeiro, concelho de Mação, em julho. As aldeias foram evacuadas. As pessoas foram levadas para um local mais seguro. E depois vieram as chamas e comeram casas e animais, terrenos, bens e memórias.
A luta do homem não foi suficiente para travar uma força maior. As chamas entraram onde quiseram, devastaram o que encontraram pela frente, sem pedir licença, sem olhar ao quê ou a quem.
Amélia Dias tem 83 anos. Vive em Vale da Casa, freguesia do Carvoeiro. Esta foi uma das centenas de aldeias devastadas pelos incêndios deste verão no concelho de Mação. A sua casa foi uma das que, na freguesia, ardeu no incêndio de julho. Passadas as chamas e de regresso ao sítio das memórias, Amélia Dias achou que tudo tinha acabado, pensou que nunca mais teria casa mas a Cáritas Diocesana de Portalegre construiu-lhe uma, no lugar da antiga. Entregou-lhe as chaves no Natal passado.
Amélia Dias olha a casa. É nova, é boa, mas “antes queria ter a casa velha e ter as minhas coisas, mas pronto, fiquei com a casinha muito bem arranjadinha, já é bom”, diz já conformada. Apesar de velho, o uso das coisas guardava sentimentos e memórias, guardava cheiros, imagens. À reportagem da Rádio Condestável fala da velha e apresenta a nova: “aqui é um quartinho, deram-me a cama e a mesa-de-cabeceira. A televisão e o sofá foram além os rapazes da bola que me deram (Grupo Desportivo e Recreativo do Carvoeiro). Estes móveis deram-mos no Mação. Aqui é a casa de banho”, descreve, recordando aquele fim de tarde em que foi convidada a sair de casa. Não queria mas teve que ir. “Fui ali para casa de uma vizinha mas eu não estava lá bem. Quando cheguei ali ao largo e vi esta casa toda em chamas, nem tem explicação. Se aqui estivesse talvez a casa não ardesse”, idealiza. Gritou, chorou. “Nunca me esquece”, continua como quem ainda vê o lume “ali naquele cabeço. Apareceu de lá parecia um cavalo. Estava aqui, saltava para além, não tem explicação”, repete.
Ali ao lado, porque aqui tudo fica perto de tudo, a Feiteira. As chamas chegaram sem aviso. Joaquim Cardoso, 87 anos, saiu da sua terra de trator para ajudar os vizinhos do Pereiro, onde o fogo andava mas “a GNR já não me deixou vir para baixo. Fomos todos para o lar para o Carvoeiro, mas se cá estivesse a casa não ardia”, diz com a mesma certeza de Amélia Dias. “O gajo veio por essa tapada acima meteu-se ali por baixo (onde tinha alojas, tudo em madeira) e pronto, ardeu tudo. Isto foi o fim do mundo. As casas velhas arderam todas. Ele entrou em todo o lado e aqui só deram por ela quando o telhado caiu”, descreve. Joaquim Cardoso vive com um filho. Estiveram os dois dias e meio no lar do Carvoeiro. “Só fiquei com o fato do corpo. Eu e o moço. Tinha aí de tudo, roupas, loiças, tudo, fiquei sem nada”, lembra. Também a Cáritas lhe reconstruiu a casa. Passada a devastação sabe que “nada havia a fazer”. Encontrou coragem na sua própria força e em “muita gente que me veio aqui ajudar”, agradece. “É triste mas é assim a vida”, dizem ambos. Amélia sonha muitas vezes com as chamas. “Eu dizia que queria morrer”, nunca se há-se esquecer. “Tinha além uma horta. Ardeu tudo. Tinha galinhas, ficou uma aqui, outra além, tudo queimado”, diz enquanto aponta para o chão que a encaminhou dali para fora no dia do inferno.
As ajudas foram chegando, de entre outros lados, da Câmara Municipal de Mação, com bens e ajuda psicológica, salienta Amélia. Também Joaquim se sentiu sempre apoiado pela equipa de psicólogas da câmara. Agradece igualmente a ajuda incessante do padre do Carvoeiro. Pela sua parte recebeu uma televisão e um micro-ondas e muitas palavras de alento e de coragem. As ajudas chegaram também do Grupo Desportivo e Recreativo do Carvoeiro. Amélia recebeu um sofá. Joaquim um móvel e um cachecol. Amélia recebeu um motor de rega, galinhas e comida para os animais, de outros benfeitores amigos e desconhecidos. Agradece tudo, do fundo de um coração aberto que olha em frente. “O que é que se há-se fazer”... Em Vale da Casa ardeu a sua, palheiros e tudo o que estava verde. Às portas da sede de freguesia ainda hoje se questiona “como é que ardeu tudo. Nunca pensei. Isto foi o demónio”. Tal como a Amélia e a tantas outras pessoas, também a Joaquim Cardoso arderam todas as propriedades. “É uma miséria. As videiras está tudo seco”, lastima. Oliveiras, tapadas, a horta, os pinheiros e os eucaliptos. Já nada vai ser como antes, já nada vai ‘bogar’ como devia, consciencializa-se Joaquim olhando pela nova janela a tapada e a encosta ainda com sinais visíveis da devastação, contudo, “a fazenda ainda é como o outro. Agora a casa. É triste, muito triste”, foca. Lembra-se de achar que a tragédia de Pedrógão nunca havia de chegar, “mas chegou. Começou na Sertã. Veio por aí abaixo e até escapou para o outro lado do Tejo. É uma miséria”, reforça.
Os dias passam. Passam-se, uns melhor que outros, nuns as imagens ofuscam-se, noutros avivam-se. “É assim a vida”. Amélia resigna-se, chora, sorri, “mas olhe, tudo se passa”, diz de novo, como se fosse preciso repetir a ideia para se conseguir acreditar na mesma. Insiste em dizer que serão poucos os anos que lhe restam. Sabe que nunca vai esquecer o que se passou, mas é na ideia de ter força que se segura e que aguenta os dias que chegam. “Gosto de andar e de trabalhar. Vou à horta, vou passando a terra, trago um braçado de lenha para queimar ao serão, que há aí muita dos pinheiros queimados”, insiste.
Aos 87 anos, Joaquim também vai cavando a terra, distraindo a alma e enganando os dias. Na horta que tem pegada à casa “o fruto ardeu e tostou-se tudo” mas Joaquim já plantou couves, almeirões e nabos.
A Cáritas fez-lhes as casas. Construiu-lhes novas paredes, novas divisões, um novo conforto, mas nada será como dantes. Nada terá o calor das memórias, dos cheiros, das cores gastas com o tempo.
Aos poucos os campos fazem-se verdes, cor que esconde um negrume que jamais se descolará da alma de quem perdeu tudo, de quem viu, impotente, as imponentes chamas levarem a luta de uma vida.
Agradecem as ajudas, levantam as mãos para Deus pelo facto de ainda estarem vivos. A vida reconstrói-se, devagarinho, apesar da idade avançada, mas nada será como dantes.